Direito Digital nas Ciências Criminais: Desafios Contemporâneos

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por Ulysses Monteiro Molitor

Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC)
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES)
Especialista em Direito Processual
Procurador autárquico da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/ SP desde 2008
 

  A crescente digitalização da sociedade transformou profundamente as dinâmicas sociais, econômicas e jurídicas. No âmbito das ciências criminais, o Direito Digital emerge como uma disciplina essencial para enfrentar os desafios impostos pelos crimes cibernéticos,
seja pela disseminação de informações em larga escala, seja pela complexidade das provas digitais. Assim, buscaremos analisar os principais aspectos relacionados à proteção dos valores constitucionais, à atuação das instituições jurídicas frente à sociedade de risco, à
influência da mídia na formação dos tipos penais e à importância da cadeia de custódia na validade das provas digitais.

  A Constituição Federal assegura direitos fundamentais como a privacidade, a liberdade de expressão e o devido processo legal. No contexto digital, esses direitos enfrentam novos desafios, especialmente diante da facilidade de disseminação de informações e da coleta de dados pessoais (BARROS, 2021). A proteção da privacidade, por exemplo, é constantemente testada por práticas de vigilância eletrônica e pelo uso indevido de dados pessoais. A jurisprudência tem buscado equilibrar esses direitos, reconhecendo a necessidade de proteger a intimidade dos indivíduos sem comprometer a segurança pública (MORAIS, 2020).

  A teoria da sociedade de risco, proposta por Ulrich Beck (2011), destaca como as sociedades modernas enfrentam perigos decorrentes do próprio desenvolvimento tecnológico. No Brasil, a atuação da advocacia, do Ministério Público e do Judiciário é crucial para mitigar esses riscos. Estas devem adaptar suas práticas para lidar com crimes cibernéticos, garantindo a efetividade das investigações e a proteção dos direitos fundamentais. A cooperação internacional, por meio de tratados como a Convenção de Budapeste sobre Cibercrime, também é essencial para enfrentar crimes que transcendem fronteiras nacionais (ANDRADE, 2022).

  A tecnologia e a mídia desempenham papel significativo na formação e adequação dos tipos penais. A pressão social, amplificada pelos meios de comunicação, pode influenciar a criação de leis penais, muitas vezes em resposta a eventos de grande repercussão (ZAFFARONI, 2014). No entanto, é necessário cautela para evitar a criminalização simbólica e garantir que as normas penais sejam elaboradas com base em critérios
técnicos e jurídicos sólidos.

  Os crimes cibernéticos englobam diversas condutas ilícitas praticadas por meio de tecnologias da informação e comunicação. No Brasil, a Lei nº 12.737/2012 (BRASIL, 2012), conhecida como Lei Carolina Dieckmann, criminaliza a invasão de dispositivos informáticos. A jurisprudência tem enfrentado desafios relacionados à obtenção de provas, à identificação dos autores e à cooperação internacional (SILVA, 2023).

  A exposição midiática de investigações e processos penais pode comprometer princípios fundamentais como a presunção de inocência e o devido processo legal (LOPES JR., 2017). A divulgação de informações sensíveis pode influenciar a opinião pública e, consequentemente, a atuação dos operadores do direito. É imprescindível que as autoridades conduzam investigações com discrição e que a mídia atue com
responsabilidade, respeitando os direitos dos envolvidos e evitando prejulgamentos. Outro ponto crucial é a definição da competência para o julgamento de crimes digitais, situação que apresenta desafios específicos, dada a natureza transnacional e difusa dessas infrações. A jurisprudência brasileira tem adotado critérios como o local de ocorrência do resultado do crime ou o domicílio da vítima (NUCCI, 2021). Contudo, a ausência de fronteiras físicas na internet exige flexibilidade e cooperação entre diferentes jurisdições para garantir a efetividade da persecução penal.

  Quanto às hipóteses de prisões processuais, a prisão em flagrante e a prisão preventiva devem ser fundamentadas em critérios legais e objetivos. Entretanto, a pressão midiática pode influenciar essas decisões, especialmente em casos de repercussão social. Lopes Jr. (2017) alerta para o uso indevido do clamor público como fundamento jurídico. A legalidade deve prevalecer sobre a opinião pública, e o Judiciário deve zelar por decisões baseadas em fatos e provas.

  Atualmente, importante destacar também que a validade das provas digitais depende da cadeia de custódia, que assegura sua integridade e autenticidade. O Superior Tribunal de Justiça tem reforçado a importância desse procedimento, anulando provas obtidas sem a documentação adequada (STJ, 2020). Técnicas como o código hash e a conformidade com normas técnicas, como a ISO/IEC 27037, são essenciais para garantir a admissibilidade das provas digitais no processo penal (BITENCOURT, 2021).

  O populismo penal midiático, que se refere à influência da opinião pública e da mídia nas decisões judiciais, pode comprometer a imparcialidade judicial e levar a medidas punitivas desproporcionais (ZAFFARONI, 2014). Com efeito os magistrados devem fundamentar
suas decisões com base em provas e nos princípios constitucionais, resistindo às pressões sociais para garantir a justiça.

  O Direito Digital nas Ciências Criminais enfrenta desafios complexos decorrentes da acelerada evolução tecnológica e da digitalização das relações sociais contemporâneas. A proteção dos direitos fundamentais, como a privacidade, a dignidade e o devido processo legal, aliada à atuação responsável, técnica e ética das instituições jurídicas, ao controle da influência midiática e ao fortalecimento da cadeia de custódia digital, constitui alicerce indispensável para a construção de um sistema penal mais justo, equilibrado e eficaz. A atuação constante e qualificada dos operadores do direito revela-se essencial para assegurar que o avanço tecnológico seja utilizado como instrumento de justiça, e não como ameaça às garantias do Estado Democrático de Direito.

Referências:

ANDRADE, J. C. de. Crimes digitais e jurisdição: uma abordagem transnacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
BARROS, M. C. de. Direito Digital e os Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.
BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal: parte geral. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de
delitos informáticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 01 jun. 2025.
LOPES JR., A. A. Direito Processual Penal. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
MORAIS, A. P. de. Constitucionalismo Digital: liberdades e limites da proteção de dados. Curitiba: Juruá, 2020.
NUCCI, G. P. Código Penal Comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
SILVA, R. A. da. Investigação Criminal na Era Digital. Brasília: Editora do MPF, 2023.
STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo de Jurisprudência nº 683. Brasília: STJ, 2020.
ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal.
21. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.