Sociedade Digital ou 4.0: uma nova forma de mundo baseada em redes

por Gabrielle Kolling

Pós-doutora em Direito
Professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS

🌐Currículo Lattes

  A consolidação do capitalismo pode ser compreendida a partir de revoluções ocasionadas no sistema produtivo e refletidas nas relações de trabalho. Assim, a Primeira Revolução Industrial (Inglaterra, no início do século XVIII) ficou caracterizada pela invenção do motor a vapor, o qual minorou a lida no campo e as tarefas manuais. Já a Segunda Revolução Industrial (Estados Unidos e Europa, final do século XIX) é “marcada pelo conceito de produção em massa com estudos de tempos das atividades de trabalho e tecnologias de mecanização substituindo a energia à vapor (sic) pela química e eletricidade aumentando o desempenho das indústrias” (SANTOS et al., 2020, p. 3).

  A Terceira Revolução Industrial, iniciada no final da década de 1960, apesar de ter como característica preponderante a automação dos processos produtivos, também se destaca por seus avanços científicos, a exemplo da computação eletrônica, que a marcaram como uma revolução técnico-científica. Outros processos de inovação a serem destacados nesse período são os avanços em robótica, telecomunicações, nanotecnologia, química fina e transportes (ROCHA; LIMA; WALDMAN, 2020). Ainda é nesse estágio que se percebe a face financeira do capitalismo e o desencadeamento do fenômeno da globalização. Na transição para o terceiro milênio, Manuel Castells passa a ponderar a formação de uma nova era calcada na informação: a sociedade em rede. Em sua análise, obtemperou que as redes são estruturas flexíveis e abertas, com capacidade de expansão sem qualquer limitação, congregando diversos ‘nós’, e com intenso fluxo de comunicação acerca de valores ou objetivos, a título de exemplo, dentro do seu ecossistema. Essa modelagem é demasiadamente dinâmica e inclinada à inovação, de modo que não abala seu equilíbrio ecossistêmico. Ademais, para Castells (2009, p. 566):

  Redes são instrumentos apropriados para economia capitalista baseada na inovação, na globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise à suplantação do espaço e invalidação do tempo.

  Para compreender esta perspectiva, deve-se desnudar o entendimento que a rede poderia ser compreendida tal qual um sistema hermeticamente fechado. Muito pelo contrário: comunga da dinâmica não linear da Teoria da Complexidade, evolui em direção à formatação de uma rede de acessos múltiplos e com as novas TIC’s “se tornaram um dos fenômenos sociais mais proeminentes de nossa era” (CAPRA, 2008, p. 18). Além do mais, o novo paradigma é permeado por características próprias, quais sejam: i) informação é matéria-prima; ii) penetrabilidade das novas TIC’s; iii) lógica concomitantemente estruturada e flexível; iv) flexibilidade dos processos e das organizações; v) progressiva convergência de determinadas tecnologias para um sistema bastante integrado (CASTELLS, 2009, p. 108-109).

  Sem embargo, Castells (2009) prefere não dispor respostas. Pelo contrário, procura o caminho da instigação com fulcro na tecnologia como ponto de partida para abrir caminhos para observações posteriores. Seguindo esta trilha, anos mais tarde, em 2011, é concebida, pela primeira vez, a terminologia Indústria 4.0, na Alemanha, em alusão a esta nova face do modelo de reprodução do capital.

  Logo, a Quarta Revolução Industrial, ou Indústria 4.0, ou ainda economia digital, caracteriza-se como um agrupamento de tecnologias que consente a fusão do mundo físico, digital e biológico, que imprimirá impacto exponencial e de maior profundidade (INDUSTRIA 4.0, [s. p.]). Para Schwab (2016, p. 15-16, grifos do autor), há três razões que a diferenciam da revolução anterior, quais sejam: velocidade (ritmo exponencial e não linear); amplitude e profundidade (“a revolução não está mudando o que e o como fazemos as coisas, mas também quem somos”); impacto sistêmico (transformação de sistemas inteiros).

  Além disso, tem por base princípios dos sistemas ciber-físicos, internet e tecnologias mirando o futuro, mas também sistemas inteligentes, com protótipos aprimorados de interação entre humano e computador (IHC). “Tem por objetivo lidar com necessidades personalizadas e desafios globais para ganhar força competitiva, levando em consideração a crescente globalização dos mercados” (ABREU, 2020, p. 135).

  Dentre outras particularidades, é visível uma gama de desenvolvimentos tecnológicos e inovativos, até então nunca empreendidos, consubstanciados na implementação de TIC’s, na ampliação dos procedimentos de digitalização e na necessidade de conexão de sistemas que permeiam as fases da produção (interna ou externamente às organizações). Tudo isso por meio de sistemas ciber-físicos, os quais se valem das TIC’s para o monitoramento e o controle dos processos. Neste particular, é válido salientar a introdução de inteligência artificial (IA), de equipamentos de impressão em 3D, de artifícios relacionados à internet das coisas (IoT), da nanotecnologia, da biotecnologia, do iminente avanço da biologia sintética (SynBio), dentre várias inovações (SCHWAB, 2016).

  De modo geral, na atualidade, tais surgem como alternativas incontestes para diversos usos como acionar máquinas, interconectar aparelhos, sistemas e pessoas, seja na arquitetura industrial, seja entre clientes, fornecedores e distribuidores. Diante desta avassaladora mudança de paradigma, é praticamente inviável lançar qualquer olhar futuro a despeito das implicações que pode causar à humanidade em seus diversos modos de organização (economia, sociedade, relações internas e internacionais, negócios e contatos interpessoais).

  “Na verdade, o desenvolvimento da ciência e da técnica, é sempre desenvolvimento humano acerca da natureza, inclusive da natureza dos humanos e, assim, esse desenvolvimento sempre intensifica e aprofunda a relação com a natureza” (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 290). Por causa deste paradoxo, no qual não se podem alijar as figuras do dominado e do dominador, que é imprescindível retornar às lições de Castells, quando faz uma reflexão sobre o momento histórico que se vive, cuja percepção é que o homem terá por opção se estabelecer em mundo preponderantemente social.

  Diante desse cenário, paira um questionamento que não é novidade e que pode ser apenas modificado o recorte, quiçá majorado, relativamente aos sujeitos que ficarão à margem de toda esta reconfiguração ou aos quais restará uma condição bem periférica. Outra marca indelével, deste período, é o comportamento do homem se colocando como dominador da natureza, mas a que custo (virtude)?

  Nas duas últimas décadas, eclodiram os vários nós da sociedade em rede, impondo um novo paradigma nas relações humanas e na circulação de capitais. Desta feita, a evolução e o desdobramento das TIC’s, notadamente as tecnologias disruptivas, ditam o ritmo da Indústria 4.0. Entretanto, diante desta nova revolução, é imprescindível antever e reexaminar as consequências que a humanidade comportará relativamente às pessoas vulneráveis (segregados ou periféricos).

Referências